Chamada: Os nossos passados ainda são históricos? Interpelações do presente à disciplina
Duas perguntas poderiam sintetizar nossas preocupações teóricas e epistemológicas em torno dessa proposta de dossiê. A primeira, feita por Pablo Aravena (2019, p.68) é: “podemos seguir enfrentando historicamente as novas realidades?”. A segunda, lançada por Francine Iegelski e Renata Schittino (2023, p.10) se situa na mesma direção: “conseguiremos reconfigurar o sentido do histórico na história?”[1]. Tomadas em conjunto, elas nos parecem um bom caminho para inquirirmos as incertezas e dúvidas quanto ao futuro da história, não apenas como campo disciplinar, institucionalizado em escolas e universidades, mas como matéria factual mesma que pode ser submetida aos critérios padronizados de verificação empírica. Entre as questões que nos assombram, a pertinência da indagação sobre o que podemos chamar de histórico, em nosso tempo, demonstra ser inadiável. E elas podem fazer a história despertar, finalmente, de seus sonhos de imortalidade que se ancoravam, presumivelmente, “na sua memória disciplinar hegemônica, repleta de auto idealizações e teleologias suspeitas” e que, em suma, assegurava aos historiadores que não havia o que temer no futuro (Ávila, 2022, p.19)
Uma das hipóteses que fundamentam essa proposta é a de que devemos considerar que essa percepção de uma crise disciplinar se relaciona com transformações efetivas ocorridas no interior da produção historiográfica e na dinâmica das relações sociais que precisam ser historicizadas para que possamos compreender a durabilidade de seus efeitos e alcances. Como índice de nossas questões, reside o próprio estatuto da noção de histórico, ou seja, aquela condição que transforma os passados em objeto de investigação dos historiadores por intermédio das tópicas da distância e da diferença. Perceber algum passado como histórico, portanto, supunha, além de uma operação cognitiva, outras condições temporais e existenciais, tais como cadência, regularidade e contemplação. Se o mundo que deu origem à transformação do estudo do passado em um saber organizado se transformou profundamente desde o século XIX, por que nos refugiaríamos na cômoda convicção de que a história continuaria navegando sobriamente em águas tão turbulentas?
Temos em vista que essa percepção de um esvaziamento disciplinar do campo historiográfico pode ser pensada a partir de alguns eixos de análise. Um primeiro deles remete ao problema da confiança e da autoridade epistêmica. O argumento central é o de que, de um ponto de vista social, atribuímos aos historiadores uma certa autoridade epistêmica, isso é, presumimos que os historiadores estão em melhor posição epistêmica para julgar as evidências de que dispomos sobre o passado, e, por outro lado, confiamos no trabalho desses historiadores. Esse argumento nos exige uma profunda análise conceitual para sermos capazes de compreender o funcionamento teórico dessa atribuição de autoridade epistêmica, seus limites e as condições sociais para o estabelecimento da confiança. Assim, ao lado de outras análises empíricas sobre a percepção pública da disciplina e dos seus praticantes, este trabalho conceitual pode contribuir para a compreensão das condições sociais de legitimidade do conhecimento histórico produzido pelos historiadores.
O segundo eixo localiza-se na interrelação entre crise da história e crise democrática. Enquanto a primeira parece se manifestar através de uma desconfiança na capacidade dos historiadores de representarem cientificamente o passado, a segunda se mostra como uma crise da própria coisa representada, ou seja, uma crise das formas socialmente consagradas de representação do múltiplo e que, em última instância, criaram as condições de possibilidade da modernidade e das instituições que formataram os diversos saberes sobre o humano, entre eles a história. Como efeito dessa dupla crise, assistimos a reconfigurações reacionárias do passado que, por sua vez, realimentam a sensação de esvaziamento da experiência democrática em nossa contemporaneidade.
O terceiro eixo pode ser situado entre os temas da experiência, da ficção e da verdade, levando-se em conta os desafios postos à história com a emergência de novos presentes. Assim, esse eixo organiza uma reflexão sobre a capacidade da ficção de modificar continuamente a nossa relação com o passado, o presente e o futuro. A questão fundamental está ligada à necessidade de reconfiguração do sentido do histórico para e na história hoje, com a emergência de diferentes presentes, especialmente quando se se leva em consideração a conjuntura aberta após a pandemia de Covid-2019.
A discussão sobre as formas pelas quais certos consensos historiográficos, bem como a própria expertise historiadora, vêm sendo sistematicamente negadas constitui a ideia central do quarto eixo. Os discursos negacionistas, bem mais do que simples imposturas intelectuais ou estratagemas políticos que atuam na ascensão da extrema-direita global, podem ser tomados como problemas teóricos e epistemológicos pertinentes ao campo da história. Pode-se pensar que o fenômeno do negacionismo histórico contemporâneo reatualiza e coloca novas disputas para problemas teórico-epistemológicos decisivos do campo historiográfico, tais como a verdade, o acontecimento e o papel do testemunho. Como fio condutor desses problemas, é a própria configuração do histórico que está em disputa quando são negadas experiências pretéritas largamente conhecidas e documentadas.
A larga percepção de uma atualização global das experiências traumáticas situa o problema conceitual das relações entre história e direito, especialmente a partir do conceito de genocídio, como um horizonte possível que conforma o quinto eixo que fundamenta essa proposta. Essa formulação conceitual vem ensejando usos da história os mais variados e operações simbólicas sobre o tempo, notadamente a partir da construção jurídico-política do regime de imprescritibilidade. Este eixo permite avaliar contribuições teóricas e limites do conceito de genocídio, com especial atenção a possibilidades de aplicação intertemporal e implicações no que diz respeito às relações entre história, direito e justiça, questões tão mais urgentes quanto lembramos de episódios, como a epidemia de Covid-19, o genocídio dos povos originários e o conflito em Gaza, nos quais as discussões sobre práticas genocidas voltaram ao primeiro plano.
Descritos os eixos que fundamentam a nossa proposta de dossiê temático, esperamos contribuições que desenvolvam os seguintes subtemas:
- Crises contemporâneas do conhecimento histórico e suas relações com a crise global das democracias contemporâneas;
- Problemas de conceituação do passado (as distinções entre passado prático e histórico, o enquadramento do passado por intermédio da operação historiográfica etc.)
- Políticas do tempo e as reconfigurações historiográficas das relações entre passado, presente e futuro;
- Refigurações do texto historiográfico e a problemática das relações entre ficção, experiência e verdade;
- Os negacionismos contemporâneos como um problema teórico e epistemológico para o conhecimento histórico;
- As reconfigurações entre as relações entre a confiança e a autoridade epistêmica do historiador, considerando-se, sobretudo, as transformações contemporâneas do conhecimento histórico;
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