Chamada A materialidade da evidência Produção, circulação e interpretação de manuscritos e impressos da Época Moderna
A digitalização crescente de fundos arquivísticos e bibliográficos, no presente facilmente consul- tados em plataformas eletrônicas, parece fazer esquecer que as evidências históricas preserva- das são compostas, em grande número, por papéis, letras, cadernos e tintas. Em decorrência, a rápida navegação por esses vastos mares de fontes reproduzidas pode contribuir também para se deixar de lado os caminhos mais lentos pelos quais os documentos provenientes da Época Moderna foram criados e construíram seus percursos. Os registros manuscritos e impressos do período situado, grosso modo, entre os séculos XVI e XVIII possuem histórias particulares, tecidas por entre autorias de perfis variados e circunstâncias de produção distintas, até serem posterior- mente colecionados, organizados e catalogados em instituições públicas ou privadas, nas quais são consultados em suas versões original ou digitalizada. Ao considerar as características físicas e trajetórias específicas da documentação preservada, o dossiê intitulado A Materialidade da Evi- dência tem por objetivo reunir estudos acadêmicos que valorizam, por uma perspectiva predomi- nantemente interdisciplinar, a materialidade social de manuscritos e impressos da Época Mo- derna.
Por materialidade social compreende-se a análise da materialidade física dos documentos, de sua produção gráfica coletiva e seus processos de edição, bem como dos modos de organização textual e visual da informação registrada. Também se destacam, nesse sentido, as investigações dedicadas à compreensão de estratégias configuradoras das autorias intelectual e gráfica de tex- tos e imagens, de forma associada a suas circulações. Desse modo, este dossiê acolherá pesqui- sas que se voltam para geografias e temas distintos unidas por uma perspectiva metodológica comum de trabalho. Qual o universo de informações que a análise da tinta, da caligrafia, dos tipos móveis, da matriz de impressão e das formas de ordenamento e preservação das evidências ma- teriais do passado traz para a pesquisa histórica?
Questões dessa ordem têm sido mais recentemente exploradas no contexto institucional do grupo internacional de pesquisa Metamorphose. Materialidade e Interpretação de Manuscritos e Impressos da Época Moderna, liderado por André de Melo Araújo e Rodrigo Bentes Monteiro, e ao qual Frederico Palomo se associa. Os processos de configuração e reconfiguração da informação na Época Moderna, os crescentes desafios colocados no presente à sua preservação, bem como a necessidade de um acesso digital com critérios acadêmicos, animam a proposta deste grupo de pesquisa – sediado no Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), em parce- ria com o núcleo Companhia das Índias da Universidade Federal Fluminense (UFF) – e conferem atualidade historiográfica à proposta deste dossiê.
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Ao conferir ênfase à materialidade das evidências históricas, propõe-se explorar um tema inédito nos dossiês até agora publicados pela revista Tempo e, assim, contribuir para que a publicação do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense ganhe espaço no debate mais contem- porâneo dedicado ao exame de fontes escritas e visuais da Época Moderna. Uma vez que o ponto de confluência dos artigos a serem selecionados para este dossiê é a perspectiva de análise da documentação histórica, reforça-se a abrangência da temática aqui proposta, de modo a contri- buir para ampliar a diversidade regional e internacional dos artigos a serem submetidos à revista. Espera-se que as contribuições que venham a ser selecionadas abordem um ou mais dos seguin- tes subtemas aqui delineados:
(1) Produção gráfica e processos de ediçãoOs artigos selecionados poderão privilegiar o estudo das circunstâncias de produção de manus- critos e impressos da Época Moderna a partir, sobretudo, do estudo da configuração visual da pá- gina, do uso de instrumentos da escrita, das formas caligráficas e dos suportes materiais da infor- mação. Espera-se, ainda, que esses artigos se ocupem da análise de cópias interrelacionadas e contrafações, da participação de copistas, editores e patronos no processo de configuração de manuscritos e impressos, bem como da produção de edições críticas contemporâneas da docu- mentação histórica.
(2) Características materiais e organização textual e visual da informaçãoEncoraja-se o envio de artigos que investiguem a organização de manchas gráficas e seus mate- riais, de técnicas de produção de gravuras, mapas, desenhos e seus agentes, podendo considerar as abordagens complementares da iconografia e iconologia em estudos de caso. Essas contribui- ções podem ainda explorar os suportes e aspectos materiais da informação visual e escrita em manuscritos e impressos, estimulando a complementaridade de diversos procedimentos analíti- cos da pesquisa histórica.
(3) Estratégias textuais: autoria e autoridadeTambém se espera publicar o resultado de pesquisas que se dedicam ao estudo privilegiado das autorias gráfica e intelectual de textos e imagens na Época Moderna. Essas pesquisas devem des- tacar o interesse pelo conceito de autoria no período, bem como as relações estabelecidas entre autores, copistas, tipógrafos e mecenas nos processos de edição dos produtos da pena ou da prensa. Podem, ainda, explorar os elementos paratextuais das obras, considerando a história de gêneros textuais e pictóricos distintos e suas estratégias retóricas, assim como o processo de constituição de edições confiáveis (“authoritative editions”).
(4) Trajetórias e circulaçãoPretende-se, no dossiê, ainda publicar estudos que valorizem a recepção e a circulação de im- pressos e manuscritos da Época Moderna, bem como a formação de coleções e a catalogação de documentos em instituições públicas e privadas. Nesses termos, incentivamos o envio de ar- tigos que exploram perspectivas contemporâneas de conservação e digitalização de documentos em bibliotecas, museus e arquivos, e necessariamente consideram, em suas análises, questões relacionadas à materialidade social de manuscritos e impressos da Época Moderna.
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Esperamos que o dossiê A Materialidade da Evidência reúna um conjunto de trabalhos que apre- sente, a partir de uma perspectiva predominantemente interdisciplinar, uma dimensão comple- mentar das análises textual e iconográfica de fontes do período e reforce a necessidade de se considerar o conjunto mais amplo de agentes produtores da documentação histórica, de modo a apontar para novos rumos de pesquisa.
Lista de referências bibliográficas relevantes sobre o tema
ARAÚJO, André de Melo. “(Re)producing the English Printed Past. Antiquarian Knowledge-Making Practices in Joseph Ames’s Typographical Antiquities (1746)”, in: Journal for the History of Knowledge, vol. 5, 2024, p. 1-25.
BOUZA, Fernando. Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001.
CASTILLO GÓMEZ, Antonio. Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro. Translation by Clau- dio Giordano. Cotia: Ateliê Editorial, 2014 [2014].
CHARTIER, Roger. The Author’s Hand and the Printer’s Mind. Malden: Polity, 2014.
DAYBELL, James/HINDS, Peter. Material Readings of Early Modern Culture. Texts and Social Prac- tices, 1580-1730. Basingstoke: Palgrave, 2010.
McKENZIE, Donald F. Bibliografía y sociología de los textos. Translation by Fernando Bouza Alva- rez. Madrid: Akal, 2005 [1686].
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O códice endiabrado. Da sublevação nas Minas em 1720. Niterói, Eduff, 2023.
PALOMO, Federico. “Production et circulation de savoirs dans une monarchie polycentrique: Goa, la chrétienté éthiopienne et l’empire portugais du XVIIe siècle”, in: Annales. Histoire, Sciences Sociales, vol. 77, n. 3, 2022, p. 427-461.
PETRUCCI, Armando. La descrizione del manoscritto. Storia, problemi, modelli. Roma: Carocci, 2016 [1684].